Uma das mais exuberantes culturas erguidas durante o primeiro milênio, a civilização islâmica legou à humanidade valiosas conquistas em vários ramos do saber – obtidas principalmente durante o califado dos obássidas (750-1055), que tinha sede em Bagdá. Na medicina, por exemplo, os sábios muçulmanos – entre eles Avicena (939-1037) – escreveram centenas de tratados, em que sistematizaram todo o conhecimento médico produzido até então. Al-Kindi (801-873) compôs mais de 250 trabalhos sobre física, química, psicologia e filosofia, entre outras áreas. A álgebra é uma ciência tipicamente árabe, criada por Al-Khwarizmi (780-850) na Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikma), uma efervescente universidade fundada pelo califa Al-Ma’amun (813-833). Traduções e comentários das obras de Platão e Aristóteles, feitas pelos eruditos muçulmanos da época, foram responsáveis em boa medida pela preservação da filosofia grega durante a Idade Média. Com todo esse esplendor científico – e as possibilidades de reflexão e de inspiração que ele oferece –, a cultura árabe permanece, porém, praticamente desconhecida no Ocidente, que ainda parece ver no Oriente muçulmano somente exemplos de radicalismos e intolerância.
Eliminar esse persistente desconhecimento da rica tradição islâmica entre os ocidentais é um dos objetivos do livro O Islã clássico – Itinerários de uma cultura, lançado recentemente pela Editora Perspectiva. Com 870 páginas, a obra traz 22 artigos de vários especialistas, que abordam diferentes aspectos da cultura árabe, desde literatura, teologia e filosofia até direito, ciência e política. “Que se pense na Baixa Idade Média e no intenso diálogo de Santo Tomás de Aquino com os filósofos árabes Avicena e Averróis, para nos darmos conta da urgência dessa reflexão retardatária entre nós, uma vez que nem sequer os departamentos de Filosofia, em que se estuda a filosofia medieval, apresentam uma disciplina voltada para a contribuição islâmica”, afirma, no prefácio do livro, a professora Olgária Matos, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. A organização da obra é da professora Rosalie Helena de Souza Pereira, doutora pela Universidade de Campinas (Unicamp) com uma tese sobre o pensamento político de Averróis (1126-1198).
Poesia pré-islâmica – Embora profundamente moldada pelo Islã – religião fundada no século 7 pelo profeta Muhammad ibn Abd Allah (Maomé) –, a cultura árabe ostenta marcas de suas raízes pré-islâmicas, preservadas pelas poesias compostas durante a Jahiliyya, o “tempo da ignorância e da indisciplina”, como é chamada a época anterior ao advento do islamismo. “No que concerne ao mundo árabe, não se pode falar de cultura em sentido amplo, tampouco analisar os traços mais genuínos da tradição árabe, sem remontar aos textos pré-islâmicos, primeira e única fonte de sua vida social e espiritual mais antiga”, afirma a professora Aida Ramezá Hanania, docente de Cultura Árabe do Departamento de Letras Orientais da FFLCH, que assina o artigo “O patrimônio literário pré-islâmico e sua repercussão na cultura árabe”, publicado em O Islã clássico.Isolada, inóspita e desértica, a Península Arábica – destaca Aida – abrigou um povo que permaneceu estritamente dentro de seus limites geográficos. Era formado por nômades simples e rudes, que erravam pelos desertos do norte e da região central da Arábia. De formação tribal, exercia atividades pastoris e se amparava no credo politeísta e idólatra. “Num mundo estruturado pela solidão, pelo vazio e pelo silêncio que eloqüentemente o povoa, num mundo privado de emoção telúrica e que tem como constantes a aridez, a invisibilidade e a monótona sucessão do tempo, o homem volta-se inapelavelmente a si mesmo e a seu meio, perscrutando-o e revelando-o poeticamente, em filigrana, fazendo emergir, a um tempo, o particular e sua ligação com o universal”, escreve Aida, explicando as mais profundas origens da poesia pré-islâmica. Esses valores estão expressos no poema Hutba, de Quss Ibn Saida, orador e poeta do século 6, em que convida os membros de sua tribo, Iyad, a ler a mensagem escrita na natureza e nos homens, em tradução de Helmi Nasr:
Ó gente! Ouvi e meditai!
É certo que quem vive morre
E quem morre finda
E o que tiver que ser será.
(Contemplai) a noite escura
O dia sereno
O céu, com suas constelações!
E estrelas, que brilham
E mares, que se agitam
Montanhas assentadas
A terra, que se estende
Rios que correm
Não vedes que no céu há notícias
E na terra, sinais?
Por que será que os que se foram não voltam?
(…)
Neste ir-se das antigas gerações, há para nós luz interior
Quando vi ondas de morte chegando, sem que saibamos de onde procedem
E vi meu povo ser por elas tragado, tanto os pequenos como os grandes!
E vi que não volta o passado, nem retorna quem se foi
Então me convenci de que também eu irei para onde meu povo está.
É certo que quem vive morre
E quem morre finda
E o que tiver que ser será.
(Contemplai) a noite escura
O dia sereno
O céu, com suas constelações!
E estrelas, que brilham
E mares, que se agitam
Montanhas assentadas
A terra, que se estende
Rios que correm
Não vedes que no céu há notícias
E na terra, sinais?
Por que será que os que se foram não voltam?
(…)
Neste ir-se das antigas gerações, há para nós luz interior
Quando vi ondas de morte chegando, sem que saibamos de onde procedem
E vi meu povo ser por elas tragado, tanto os pequenos como os grandes!
E vi que não volta o passado, nem retorna quem se foi
Então me convenci de que também eu irei para onde meu povo está.
Segundo o professor, à medida que Muhammad recebia as revelações do arcanjo Gabriel e as transmitia a seus seguidores, anotações iam sendo feitas em folhas de tamareira, pedaços de couro fino, ossos de camelo ou de ovelha, telas de seda e em papéis oriundos da Índia, entre outros tipos de material. “O próprio profeta ditou aos ‘escribas da revelação’ cada versículo, cada capítulo, o que permite afirmar com segurança que não houve qualquer tipo de alteração ou manipulação da mensagem original da Escritura sagrada”, destaca Iskandar. “Há apenas os escritos originais e, neles, nenhuma modificação foi feita. Nada no Corão pode ser considerado apócrifo. Até hoje, o livro sagrado permanece em sua forma originária e íntegra.”
Escolas teológicas – A revelação do Corão não somente representou o advento de um livro de orientação espiritual, ética e social. Ela também gerou um rico pensamento teológico – traduzido pelo termo árabe kalam –, que fez surgir diferentes movimentos de teólogos, empenhados em decifrar, interpretar e ensinar a palavra divina. Duas dessas “escolas” teológicas do kalam – a mutazilita e a asarita – são analisadas pelo professor Tadeu Mazzola Verza, da Universidade Federal da Bahia, no artigo “Kalam: a escolástica islâmica”.Segundo Verza, o mutazilismo – fundado por Wasil Ata, morto em 748 – foi a doutrina oficial dos abássidas na primeira metade do século 9. Apesar disso, foi condenado e teve a maior parte de suas obras destruídas, principalmente devido ao caráter racionalista de seus seguidores. Para eles, é obrigação da razão elevar-se a Deus e buscar entendê-lo, pois isso é da natureza da própria razão, e não um comando da Lei sagrada. “Se a Lei não tivesse existido, segundo essa posição, ainda assim seria função da razão buscar Deus, pois o conhecimento de Deus não seria pautado pela Lei, mas pela razão; interpretar o Corão e não tomá-lo literalmente faria parte dessa obrigação”, escreve Verza. A preocupação em defender a fé contra os infiéis de seu tempo inspirado no masdeísmo (religião persa), no maniqueísmo e, mais tarde, na filosofia grega – acrescenta o professor – é a principal característica do mutazilismo como doutrina.Essa visão racionalista da fé, proposta pelos mutazilistas, contribuiu para o surgimento da escola dos asaritas, fundada por Abu al-Hasan al-Asari (873-941). De acordo com Verza, Al-Asari inaugurou um caminho intermediário entre o racionalismo dos mutazilitas e a absoluta literalidade na interpretação do Corão, defendida pelos teólogos ortodoxos, que criticam tanto mutazilitas como asaritas. “O caminho intermediário inaugurado por Al-Asari deveria antes ser legitimado: deveria ser demonstrado que era possível discutir teologia considerando os conceitos trazidos pela filosofia grega, sem que isso configurasse inovação”, afirma Verza. Al-Asari demonstrou isso dizendo que a acusação de inovação feita pelos ortodoxos contra os asaritas era também uma inovação, pois eles condenavam atos que o profeta não condenara.
Filosofia grega – Além do kalam, outro movimento surgiu no mundo árabe, igualmente interessante e enriquecedor. Trata-se da falsafa, termo aplicado à filosofia de inspiração grega escrita em língua árabe, a partir do século 8. Tomando de empréstimo noções elaboradas pelo platonismo e pelo aristotelismo tardio, os filósofos do Império Islâmico formularam um pensamento que explicava racionalmente a civilização islâmica – até então baseada somente na aceitação incondicional do Corão e da tradição –, criando, assim, uma filosofia teísta fundada na razão, como analisa Rosalie Helena de Souza Pereira na apresentação de O Islã clássico. “Com os sistemas e as categorias da razão grega, os filósofos muçulmanos explicaram temas relativos à fé, como a criação do universo, a eternidade de Deus, a vida após a morte, o fenômeno da profecia, a mediação dos anjos entre os homens e Deus, a existência de milagres e outras tantas crenças religiosas.”Essas características estão bem presentes nas obras de Al-Farabi (870-950), o primeiro e mais influente dos pensadores ligados à falsafa, como afirma o professor Rafael Ramón Guerrero, da Universidade Complutense de Madri, na Espanha, no artigo “Al-Farabi: o filósofo e a felicidade”, um dos textos de O Islã clássico que tratam dos filósofos muçulmanos. Segundo Guerrero, Al-Farabi foi o primeiro pensador do Islã a construir um sistema metafísico, produzindo também uma ampla exposição do neoplatonismo árabe e da filosofia de Aristóteles. “Al-Farabi reinterpretou o conjunto do Islã a partir de seu ponto de vista filosófico, trazendo uma nova luz aos diversos aspectos da vida islâmica, desde a teologia até a organização da sociedade”, diz o professor. “Sua filosofia adquire um caráter essencialmente político, uma vez que seu objetivo final consistiria em modificar os próprios fundamentos da comunidade muçulmana, com o fim de a integrar em outros diferentes, cuja fonte já não seria apenas a lei divina, mas também uma lei procedente da razão humana, como duas expressões de uma e mesma lei ou verdade.”Orientado pelas obras de Platão e Aristóteles, Al-Farabi buscou definir as condições racionais que permitem ao homem alcançar a felicidade, continua Guerrero. A felicidade a que se refere o filósofo, porém, não é a felicidade tal como entendida no Corão, que se refere ao estado em que se encontrarão os bem-aventurados no Paraíso.
“É uma felicidade que o homem, na atualização de suas potencialidades individuais, só poderá alcançar pelo cultivo das virtudes morais e intelectuais, mas que só pode ser atingida no interior de uma sociedade.”
Outros grandes filósofos muçulmanos, como Avicena, Avempace e Averróis, também são temas de artigos publicados em O Islã clássico. O livro traz ainda textos sobre a mística muçulmana, uma tradição que cultiva o conhecimento através da iluminação, da razão e da purificação do adepto. Iniciada no século 12 com a fundação da Escola da Iluminação (Al-Israq), na Pérsia, esse misticismo filosófico caracterizou a filosofia islâmica posterior. Outros textos de O Islã clássico analisam o direito e o pensamento político islâmico medieval. A última parte do livro é dedicada à presença do Islã no judaísmo e no cristianismo.
A presença do Islã no Ocidente
O Islã está mais presente na cultura ocidental do que se imagina. Essa é uma conclusão a que se pode chegar ao ler a última parte do livro O Islã clássico – Itinerários de uma cultura. Nela, quatro textos destacam a influência de pensadores muçulmanos em importantes autores do Ocidente.Nada menos que a Divina Comédia, obra-prima do poeta florentino Dante Alighieri (1265-1321), sofre a influência de fontes islâmicas, como mostra o professor Helmi Nasr – docente de Língua Árabe do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP –, no artigo “A escatologia islâmica na Divina Comédia”. Nasr lembra que foi o arabista espanhol Miguel Asín Palacios, no livro La escatologia musulmana en la Divina Comédia, publicado em 1919, quem primeiro apontou a contribuição da cultura árabe para a criação de Dante. “No parecer do autor, a arquitetura dos reinos celeste e infernal e a própria narrativa da viagem ao além, no poema dantesco, têm sua fonte de inspiração nas tradições islâmicas.”Outro pensador que recebeu influência islâmica foi o filósofo catalão Raimundo Lúlio (1232-1316), como mostra Victor Pallejà de Bustinza, professor da Universidade de Alicante, em Valência, na Espanha, em outro artigo. Também baseado em pesquisas de Asín Palacios, Bustinza destaca a influência de Ibn Arabi (1165-1240) sobre o catalão.Outros artigos, de autoria de Nachman Falbel, professor do Departamento de História da FFLCH, e de Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo, do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo, abordam, respectivamente, o pensamento de Saadia al-Fayyumi (892- 942) e de Avicebron (1022-1070), ambos pensadores judeus com influência muçulmana.
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