A Dra. Marcia Angell foi editora-chefe do New England Journal
of Medicine, um dos periódicos científicos mais respeitados do mundo.
Atualmente, a Dra. Angell é professora no Departamento de Medicina
Social da Harvard Medical School. Sua especialização é em
medicina interna e patologia. Há alguns anos atrás, a revista Time
classificou a Dra. Angell como uma das 25 pessoas mais influentes dos
Estados Unidos. Ela é uma autoridade reconhecida mundialmente dentro da
medicina e defensora de reformas em áreas da saúde em geral e
da pesquisa científica. Veja aqui a entrevista concedida ao jornalista fisiologista Ricardo Guerra do Estadão esta
semana com exclusividade:
Pergunta Blog: Qual é a função do governo dentro de um sistema de saúde?
Marcia Angell: Eu acredito que qualquer governo
decente vê como sua responsabilidade a obrigação de oferecer um sistema
de saúde para toda sua população. Em essência, o governo tem a
responsabilidade de supervisionar o sistema de saúde. Eu sou a favor de
um sistema de saúde sem fins lucrativos, providenciado e administrado
pelo governo, que garante tratamento para todos. Eu proibiria o lucro
dentro da medicina, pois acredito que este seja o cerne do problema.
Pergunta Blog: Então não haveria um sistema privado que concorresse lado a lado com o sistema governamental que você propõe?
Marcia Angell: Não. Eu não acredito num sistema que
tenha dois níveis. Eu acho que um dos pontos fortes do sistema canadense
é que todas as pessoas fazem parte daquele sistema. Mesmo com recursos
financeiros, o sujeito não tem a opção de um outro sistema de saúde, ou
seja, o paciente não encontra uma alternativa para a opção que o governo
oferece no Canadá. Eu acredito que nos Estados Unidos todos devem fazer
parte de um sistema único incluindo o presidente e os membros do
Congresso. Dessa forma, você teria as pessoas mais poderosas
certificando-se de que tal sistema fosse adequadamente financiado. Se
você permitir que um sistema de saúde tenha dois níveis, o sistema
público ficará inevitavelmente cada vez mais enfraquecido e menos
financiado… Isso acontece porque pessoas com maior poder aquisitivo
podem pagar para obter outro tipo de atendimento.
Pergunta Blog: Em sua opinião, qual país tem um sistema de
saúde ideal? Qual o país que tem um sistema que seja exemplo de todos os
atributos que você almeja? Você consideraria o Canadá um bom exemplo?
Marcia Angell: Não é o Canadá. O Canadá tem alguns
problemas, e as províncias têm muito controle e poder. O sistema
canadense não inclui certos serviços que deveria, como, por exemplo, a
assistência em longo prazo e nem sempre cobre o custo dos medicamentos
prescritos. Embora eu acredite que o sistema canadense seja muito bom
porque ninguém é excluído, ele não abrange tudo o que eu acredito que
seja importante. Eu simpatizo com o sistema britânico do jeito que era
há alguns anos atrás. Ao longo dos últimos anos, no entanto, tem
enfraquecido. Mesmo assim, no Reino Unido se gasta um terço do que
gastamos por pessoa nos EUA e eles têm uma maior expectativa de vida,
menor taxa de mortalidade infantil e um sistema de saúde que é
considerado significativamente superior ao nosso em todos os parâmetros.
Na verdade, se você olhar para as taxas de mortalidade infantil e de
expectativa de vida, nosso desempenho deixa a desejar quando comparado a
outros países industrializados. Em termos da satisfação das pessoas, eu
diria que os franceses são os que estão mais satisfeitos com o seu
sistema de saúde.
Pergunta Blog: O que você acha do sistema britânico ter dois níveis?
Marcia Angell: O fato de ele ter dois níveis é uma
fraqueza. É difícil dizer qual sistema é o melhor de todos, mas está
claro para mim que o sistema americano é o pior dos países desenvolvidos
– o mais caro e o menos adequado.
Pergunta Blog: Você é da opinião que os médicos devem ter um salário tabelado?
Marcia Angell: Eu acredito que médicos deveriam ter
um salário fixo. A influência do dinheiro deve ser removida da prática
da medicina e ela pode ser vista de duas maneiras diferentes. Se você
examinar algumas situações de atendimento médico, você pode se deparar
com um cenário no qual quanto menos o médico oferece ao paciente, mais
ele é pago. Ele é pago para fazer o menos possível. Por outro lado,
existem outras situações nas quais ele é pago para fazer o máximo
possível, ou seja, a quanto mais testes ou procedimentos ele submete o
paciente, mais ele ganha. As duas situações são injustas. Numa delas, há
um incentivo para oferecer o menos possível, e na outra, para fazer o
máximo possível. O que eu gostaria de ver é que a boa medicina fosse
definida pelo que um médico bem preparado faria se não houvesse nenhum
interesse financeiro. A melhor maneira de fazer isso seria através de um
salário tabelado, que iria obviamente variar de acordo com a
especialidade. Tanto a especialidade médica (algumas requerem maior
tempo de treinamento) como os anos de experiência seriam fatores que
determinariam qual o salário a pagar. O ponto essencial é que o salário
de um médico deve ser tabelado, sem bônus por fazer um procedimento em
vez de outro.
Pergunta Blog: Qual é a principal razão para os medicamentos
serem muito mais caros nos EUA do que em outros países latinos ou até
mesmo no Canadá?
Marcia Angell: Muitos países têm alguma forma de
controle nos preços de medicamentos. Tanto o Canadá como o Reino Unido,
por exemplo, têm. Eu não sei se o Brasil tem ou não. Nós não temos
controle de preços nos EUA. Os medicamentos de marca (não genéricos) são
duas vezes mais caros. Nos EUA, as empresas farmacêuticas recebem todo o
tipo de favores e privilégios por parte do governo. Ironicamente, estas
mesmas companhias afirmam ser adeptas e defensoras da iniciativa
privada e do livre mercado. No entanto, tais empresas recebem isenções
fiscais e vivem de pesquisas custeadas pelo
National Institutes of Health (NIH), que é financiado com fundos públicos.
Nos EUA as empresas farmacêuticas podem cobrar o que quiserem.
Durante muitos anos elas têm usado a desculpa do elevado gasto
financeiro relacionado com as pesquisas como razão para o preço de
medicamentos ser tão altos, mas isso não passa de uma grande mentira. Na
verdade, elas estão pouco envolvidas na pesquisa, e de fato, a maior
parte de suas despesas são decorrentes de diversas manobras de marketing
para atingir os consumidores de forma indiscriminada. Finalmente, o
grande objetivo dessas companhias é maximizar o lucro a qualquer custo,
ao ponto de serem considerados imorais e de serem até um exemplo
grotesco de ganância incontrolável.
Pergunta Blog: Os Estados Unidos e a Nova Zelândia são os
dois únicos países do mundo onde quaisquer medicamentos que requerem
prescrições médicas são anunciados diretamente aos consumidores na
televisão. Qual é a repercussão desse modelo para o paciente?
Marcia Angell: As pessoas mais idosas quando
assistem televisão são bombardeadas com propaganda de diversos
medicamentos de alto custo para tratar todos os tipos de condições
médicas como a disfunção erétil, o colesterol alto, a azia e outros
sintomas. Basicamente, é o paciente que tem a iniciativa de procurar o
fármaco e de obter a prescrição de um médico na busca de um determinado
medicamento. Na verdade, o oposto deveria acontecer. Os médicos, em
geral, estão extremamente ocupados nos seus consultórios, não tendo o
tempo disponível para submeter o paciente a um exame completo. Assim
sendo, muitas vezes é mais fácil ceder ao pedido do paciente receitando o
medicamento requerido.
Pergunta Blog: Diversas leis, aprovadas na década de 1980 nos
EUA, tiveram um impacto tremendo na medicina em geral. Você poderia
comentar especificamente sobre o impacto da lei Bayh-Dole?
Marcia Angell: Basicamente, tal lei garantiu que
universidades e pequenas empresas pudessem patentear suas descobertas
que estavam diretamente ligadas a recursos públicos do
NIH (National Institutes of Health).
Antes da Lei Bayh-Dole, as pesquisas e as descobertas financiadas com o
dinheiro do contribuinte eram consideradas de domínio público e estavam
disponíveis para qualquer empresa que tivesse interesse em beneficiar
delas. Uma das principais consequências desta legislação foi uma
crescente parcialidade (falta de objetividade) por parte de muitos
pesquisadores acadêmicos em várias de nossas instituições médicas. Estes
tendem a favorecer a indústria, tornando-se empreendedores com
participação financeira nas empresas nas quais trabalham. Outras leis
também aumentaram a vida de patente de vários medicamentos de marca (não
genéricos), permitindo assim que as empresas cobrem preços exorbitantes
por um determinado medicamento por um longo período de tempo. Parece-me
que os maiores perdedores terminam sendo os consumidores.
Pergunta Blog: O que deve fazer um paciente quando ouve falar
de um tratamento ou de um medicamento que é apresentado como uma cura
para tudo?
Marcia Angell: Eles devem estar sempre cientes de
que os interesses comerciais são muito influentes dentro da medicina
americana. Desta forma, acredito que os pacientes não devem tomar
qualquer medicamento que esteja no mercado por menos de três anos, até
que haja tempo suficiente para poder determinar quais são os problemas e
os efeitos secundários que estes possam ter. É obvio que há exceções a
estes casos, em que o paciente não pode e nem deve esperar para tomar um
medicamento. Evidentemente, numa situação de vida ou morte, como por
exemplo, no caso de uma infecção que só pode ser tratada com um
antibiótico novo, o paciente não deve esperar para tomar o fármaco. De
modo geral, em relação à maioria dos medicamentos eu não tomaria nada
que tenha entrado no mercado recentemente. Acredito que procederia da
mesma forma no que diz respeito aos procedimentos médicos. Sempre que
possível, sou a favor da cautela, ou seja, de aguardar por mais provas,
pois, se algo parece ser bom de mais para ser verdade, é realmente bom
demais para ser verdade. Eu tenho uma maneira muito conservadora de
encarar a medicina.
Pergunta Blog: Quais são as especialidades médicas nas quais você vê maior abuso de procedimentos e tratamentos?
Marcia Angell: Esse abuso o qual você se refere pode
ser constatado em qualquer especialidade onde há uma utilização maciça
de medicamentos e dispositivos médicos como, por exemplo, na cardiologia
e na ortopedia. Existem outras áreas como a dermatologia, a
endocrinologia e a pediatria, em que a utilização de dispositivos
médicos não é tão prevalecente. As áreas que usam alta tecnologia são
precisamente aquelas nas quais existem os maiores abusos.
Pergunta Blog: Que regras devem ser adotadas pelos editores
de periódicos científicos para que suas publicações tenham maior
credibilidade e transparência?
Marcia Angell: Eu realmente acredito que os editores de periódicos científicos devem continuar com as políticas que o
New England Journal of Medicine
iniciou. Uma delas foi adotada em 1984 e estipulava que todos os
autores de pesquisas científicas originais tinham a obrigação de avisar
os editores sobre quaisquer vínculos financeiros que tivessem com
companhias que poderiam ser afetadas pelas conclusões da pesquisa. O
nosso periódico foi o primeiro a adotar essa política e, eventualmente, a
maioria das outras publicações de renome na área seguiram o nosso
exemplo. A outra política que instituímos em 1990 determinou que a
divulgação (dos vínculos financeiros do autor) não era suficiente em
alguns casos como, por exemplo, em artigos editoriais e de análise
crítica. Em outras palavras, determinamos que pesquisadores que tinham a
responsabilidade de escrever editoriais ou artigos de análise crítica
para a nossa publicação que envolvessem um alto teor de objetividade e
de averiguação dos fatos dentro da literatura, não poderiam ter vínculos
financeiros com empresas que pudessem ser diretamente afetadas por tais
matérias. Essa política continuou durante todo o meu tempo como
editora-chefe, porém, tendo sido abandonada pelo meu sucessor. Nenhuma
outra publicação tentou fazer o mesmo. No entanto, eu creio que essa
regra era muito importante. Atualmente, eu também estou muito menos
otimista (descrente da eficácia) sobre a utilidade de regras que
determinem a divulgação destes conflitos de interesses.
Pergunta Blog: Por que o editor que lhe sucedeu não continuou com as mesmas regras que você implementou?
Marcia Angell: Ele deixou claro que encontrar
pessoas renomadas sem conflitos de interesse para escrever artigos de
revisão e editoriais se tornou muito difícil. Eu acredito que ele
deveria se esforçar mais para encontrar essas pessoas mesmo que seja
difícil.
Pergunta Blog: O leitor deve olhar com ceticismo para
periódicos científicos que não têm regras de divulgação de conflitos de
interesses?
Marcia Angell: Claro que sim. Sem dúvida nenhuma. Eu
acho que uma política transparente de divulgação seja um critério muito
importante quando o leitor for determinar qual periódico científico ele
vai dar sua atenção.
Pergunta Blog: Existem muitos periódicos científicos que não têm regras de divulgação de conflitos de interesse?
Marcia Angell: Sim, claro. Existem milhares de
periódicos científicos e muitos deles são meras operações de transmissão
de anúncios da indústria de medicamentos, de dispositivos médicos e
para publicar artigos que são favoráveis aos diversos anunciantes.
Pergunta Blog: Qual é a porcentagem destas publicações que você acha que não tem regras de divulgação de conflitos de interesse?
Marcia Angell: A grande maioria delas.
Pergunta Blog: Existem fontes de informação isentas de
interesses financeiros, nos EUA, a quem os consumidores ou os pacientes
possam recorrer com o intuito de obter informações de forma objetiva e
imparcial sobre questões relacionadas à medicina?
Marcia Angell: Existem diversas fontes de informação sobre a saúde. Uma delas é o
Public Citizen Health Research Group que é dirigido por um médico chamado Sidney Wolfe. Esta organização lançou um livro intitulado
Worst Pills, Best Pills. Outra fonte importante é o trabalho desenvolvido pela publicação
Consumer Reports, que faz uma avaliação de diversos medicamentos e de outros assuntos relacionados com a medicina e a saúde em geral.
Pergunta Blog: Resumindo, qual é o problema do sistema de saúde norte-americano?
Marcia Angell: É um sistema baseado nas tendências
do mercado, que distribui os cuidados de saúde de acordo com a
capacidade de pagamento e não de acordo com as necessidades médicas.