sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A Tragédia de Santa Maria:Todos os direitos partem do direito de viver

O tema do artigo de hoje é uma pequena homenagem, com máximo respeito e com a gravidade que o momento exige, às vítimas que morreram de forma tão banal em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, uma região e um estado em que morei e aprendi a respeitar.(Autor Néviton Guedes : desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

Sobre o futuro da natureza humana
 
Tempos difíceis enfrenta o direito à vida. De fato, anda bem desprestigiado no mundo contemporâneo e, mais ainda, no Brasil.


Quando Jürgen Habermas, no seu livro O futuro da natureza humana, considerou importante opinar sobre o debate filosófico em torno do manuseio da pesquisa e da engenharia genética e sobre o status moral da vida pré-humana, confesso que mesmo eu achei algo exagerada a sua preocupação com a possibilidade de que as gerações futuras pudessem censurar seus pais por preferir beneficiá-las com melhorias genéticas ao invés de respeitarem filigranas morais.

Ora, pensava eu, como alguém no futuro poderá preferir que seus pais tivessem optado, por assim dizer, por eventuais “defeitos humanos genéticos” em lugar da “perfeição genética da tecnologia”? Quem, com efeito, preferiria nascer com problemas genéticos ou de saúde, se a pesquisa genética lhe propiciasse “a perfeição”? Ou dizendo de um jeito mais palatável: quem, perguntava eu, censuraria um pai por preferir que os seus filhos pudessem usufluir ao máximo das melhorias que a ciência lhes pudesse oferecer?

Supreedentemente, contudo, era essa a perspectiva do grande pensador alemão — assumir que, no plano da eticidade, nem tudo que a ciência e a tecnologia nos oferecem é justo e correto aceitar. Em referência ao pequeno grande livro de Habermas, lembra Murilo Mariano Vilaça, “A seleção artificial do ser humano é completamente descartada (...), pois afrontaria, entre outras coisas, a autocompreensão ética da espécie, a autonomia e a autenticidade dos humanos, o que comprometeria a sua dignidade”[1].

Pois bem! Nem bem digerira a rara discordância com o grande filósofo de nossos tempos, e a realidade me reconduzia humilde ao meu lugar, trazendo à lembrança a conhecida advertência do velho Hegel nos seus Fundamentos de filosfia do Direito: a coruja do saber só levanta voo ao entardecer, ou, na sua forma original e mais poética: “A coruja de Minerva inicia o seu voo apenas quando cai o crepúsculo.” E para simplificar, em termos absolutamente mundanos: filosofia não é coisa para iniciantes.

Foi divulgado, neste final de semana, no Brasil e em Portugal (clique aqui para ler), o voto dissidente de um magistrado português, que, suportado em bons fundamentos, entendeu legítimo afirmar o direito à “não-existência”. Cuidava de justificar o suposto direito de um recém-nascido a receber reparação pecuniária por danos morais em razão de — podem acreditar — “ter nascido”. O laboratório requerido, que não identificara algumas “deficiências” genéticas da criança, deveria indenizar, além da mãe (que já fora indenizada), a própria criança por ter nascido, já que o seu erro de prognóstico, em não identificar as mazelas congênitas de que padeceria, impediu a mãe de interromper — “em benefício da criança” — a gravidez.

Em outras palavras, o insigne magistrado, mais de dois mil anos depois, parece dar razão, pelo menos em alguma medida, aos espartanos, que arremessavam ao precipício as crianças “não dignas de viver”, ou seja, as crianças que nascessem com defeitos congênitos.

Insisto, em homenagem ao magistrado, que o caso era mesmo trágico. De fato, segundo a ConJur, cuidava-se no acórdão do “caso de um bebê que nasceu sem braços e com várias outras deformações, que o impedem para sempre de ter uma vida independente e normal”. Lembro também que a mãe já fora indenizada pelo erro do laboratório. Portanto, no caso, cuidava-se estritamente de “danos não patrimoniais” à criança pelo fato mesmo de ter nascido.

Segundo o respeitado magistrado, “não é possível deixar para o tempo da capacidade do filho um direito que só existe enquanto o filho é ainda feto. Alguém tem que ter a capacidade do exercício do direito no tempo em que o direito pode ser vivido”. Mas a pergunta, absolutamente constrangedora em termos morais, é a seguinte: Será mesmo que aquela criança, já agora com “o tempo da capacidade”, podendo, portanto, decidir conscientemente, entenderá que preferiria não ter nascido? Para que ninguém me exija uma resposta, defendo-me com Weber, para quem a ciência não era nem para os profetas nem para os adivinhos.

Sobre o conteúdo do direito à vida
 
Se devemos — como não-profetas — calar sobre o futuro, podemos falar sobre o passado. Pelo menos em termos jurídicos, o sentimento é de que o direito à vida já teve dias melhores. Certamente disputava o seu espaço com um número menor de bens que a sociedade e a Constituição entendiam merecer proteção. 


Aliás, já Thomas Hobbes, além de um conjunto de jusnaturalistas, considerava a proteção da vida um dos fins essenciais do Estado[2]. Hoje, apesar de ser sempre referido, de teoria acadêmica a sermão de nossos religiosos, na prática, ninguém lhe dá a mesma importância de outros direitos fundamentais, como é o caso do direito à liberdade, ou do direito à igualdade ou da dignidade da pessoa humana, para ficar nos exemplos conhecidos.

E não obstante o desprezo diante dos outros direitos, como lembra meu querido amigo e admirado professor Ingo Sarlet[3], a vida é, no mínimo, o substrato fisiológico da dignidade da pessoa humana, e toda vida humana — ainda que já extinta ou por nascer — é digna de sua existência e de ser respeitada. De outro lado, não há como falar em liberdade ou igualdade onde não haja vida. De fato, não se pode ser igual nem livre se não se vive. Portanto, só na corrupção mais ingênua de nossos tempos, é que conseguimos submeter a vida humana, sem mais e indistintamente, ao império de outros valores. Infelizmente, ainda que se negue em teoria, é essa a retórica que nós brasileiros preferimos com a prática de nossos atos.

A prova cabal da desimportância do direito à vida é que o Brasil se transformou numa grande carnificina sem que ninguém tenha protestado seriamente. O primeiro significado jurídico do direito à vida é, entretanto, a proibição de matar. Mas aqui mata-se a granel, sem motivo ou por motivo torpe, por incompetência ou por desídia, por ódio e até mesmo, dizem, por amor. Todos os dias assistimos às mais depravadas demonstrações de violência contra a vida humana sem que parta da comunidade (indivíduos, sociedade ou Estado) a mesma indignação que aquela manifestada em casos de violação ao meio ambiente, aos direitos dos animais, à liberdade de expressão, à moralidade administrativa, à liberdade ou à igualdade entre as pessoas.

Todos esses direitos, obviamente, são merecedores da máxima proteção. Mas não deixa de ser irônico que eles encontrem tantos e tão qualificados defensores, enquanto o direito à vida tenha que ser protegido apenas com a retórica de autoridades policiais ou com apelos religiosos.

A tragédia ocorrida em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, que justamente mobilizou mentes e corações, é apenas, contudo, mais uma demonstração das consequências nefastas que o absoluto desrespeito à vida humana provoca em nosso país. Infelizmente, muito embora em forma condensada, arrisco a dizer, contudo, que aquelas duas centenas de jovens mortos pela irresponsabilidade nacional com a vida humana não conseguirão impor um ponto final em nossa mortandade cotidiana. O altar da tragédia em que as vidas desses jovens foram oferecidas em holocausto ao desprezo nacional com a vida é obra de muitos anos e não acaba aqui. Não é tarefa de amadores e exige tempo e persistência.

Além de um desfalecimento moral absoluto dos valores básicos que devem governar qualquer sociedade, a começar pelo mais simples “respeita o teu próximo como a ti mesmo”, exige-se para o que aqui presenciamos uma extraordinária determinação e preparo para desvencilhar-se de responsabilidades e obrigações, além de estar disposto e vigilante para, cotidianamente, negar-se a ver as nossas mazelas. Como dizia o velho Machado de Assis, para forjar o caráter da esperteza nacional, do nosso admirado medalhão (o “esperto nacional”), exige-se tanto esforço como perspectiva. Definitivamente, não é tarefa de iniciantes.

Na verdade, se bem observado, aqueles jovens não morreram naquela madrugada. Eles, como milhões de brasileiros, vêm sendo assassinados há muito tempo e continuarão a ser mortos enquanto não tomarmos a sério a vida humana.

Começa por aceitarmos cada um a nossa responsabilidade. A epidemia moral que vivemos não é um problema que se possa curar buscando culpados no “outro”, o que invariavelmente, para mantermos a nossa cordialidade, acaba sempre chegando ao Estado, bode expiatório sempre à mão para um sem-número de problemas que só podem nascer e subsistir quando a sociedade como todo e cada um de nós — como indivíduos — consentimos com eles. O Estado tem responsabilidades nisso tudo, é óbvio, mas é um caminho que não começa nem acaba nele. Enquanto não aceitarmos nossa responsabilidade como sociedade e como indivíduos, não vejo por que ter esperanças.

Nós juristas, por exemplo, termos que retomar o bom caminho — aquele em que o Direito existe para servir à vida e ao ser humano, e não o contrário. É de se sentir saudade, por exemplo, de uma época em que os grandes do Direito Penal lembravam, por exemplo, de um Nelson Hungria, a insistir que “todos os direitos partem do direito de viver, pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida”.

[1] Murilo Mariano Vilaça. O humano entre natureza e seleção. Dilemas éticos no debate Sloterdijk- Habermas, in http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp15/vilaca.pdf , acesso em 25.01.2013.
[2] Ingo Wolfgang Salet et al. Curso de Direito Constitucional. SP: Revista dos Tribunais, 2012, p. 349.
[3] Ingo Wolfgang Salet et al. Curso de Direito Constitucional. SP: Revista dos Tribunais, 2012, p. 353.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

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