Por que têm faltado candidatos às vagas oferecidas pelo Ciência sem Fronteiras? Isso
se vê principalmente na pós-graduação, em que muitos dos estudantes de
mestrado e doutorado vivem em uma zona de conforto. Eles não ambicionam
nada de muito extraordinário, fora da curva, e vão sobrevivendo à base
de um ou dois artigos publicados por ano em revistas de baixa
relevância. Essa turma leva uma rotina estável, previsível, e não tem
grandes incentivos para se mexer e estudar no exterior.
Como
esperar que, na volta ao Brasil, os talentos agora enviados às melhores
universidades do mundo se sintam compelidos a produzir e a permanecer
em ambientes como esse? Tenho a esperança de que eles dêem uma
boa chacoalhada nas universidades brasileiras. A começar pela graduação,
ainda apoiada em um modelo velho, fossilizado. Nem mesmo instituições
mais conceituadas, como a USP, ficam de fora. Impomos aos alunos uma
carga horária absurdamente elevada, baseada em um excesso de aulas
expositivas maçantes. Basta olhar um pouco além de nossos próprios muros
para perceber que a nata da academia mundial está caminhando justamente
em direção oposta. Eles envolvem o aluno em projetos desafiantes, em
leitura e discussões de altíssimo nível, no lugar de deixá-lo preso a
uma sala de aula congelada no século XIX.
Recentemente,
vieram à tona casos de atraso no pagamento de bolsas a brasileiros
bancados no exterior pelo Ciência sem Fronteiras. Não foi a primeira
vez. Por que a recorrência do erro? Esses casos são raros diante
do volume de bolsas distribuídas, mas inaceitáveis. Eles são produto
dos labirintos burocráticos do setor público. Olhe como a coisa
funciona. O dinheiro que atrasou era para dar um adicional àqueles
estudantes que estão vivendo em cidades mais caras. Sendo uma verba
extra, era preciso publicar uma portaria para poder alterar os valores
no sistema e ainda submeter o caso ao crivo de uma instância jurídica. O
trâmite acabou se arrastando por mais tempo do que deveria, e os alunos
ficaram quatro meses sem ver a cor do dinheiro. Não podemos deixar que
se repita, sob o risco de arranhar uma ótima iniciativa.
Houve resistências ao programa por parte das universidades? Inicialmente,
sim. Alguns coordenadores e professores questionavam: "Como assim? Vão
levar embora nossos melhores cérebros?”. Eles não conseguiam olhar um
passo adiante. Mas, conforme foram se familiarizando com o programa,
acabaram se convencendo de que poderia ser bom para todos. Uma turma que
até hoje reclama é a da área de humanas, que ficou de fora. Não se
passa um dia em que eu não receba um e-mail de alguém contrariado
querendo saber o motivo da exclusão. Explico a essas pessoas que as
bolsas para humanidades não foram extintas, e até se expandiram, só não
foi no mesmo volume que as demais.
Com o Ciência sem Fronteiras,
fizemos, sim, uma opção pelas áreas exatas e biomédicas. porque o país
precisa contar com uma base de talentos aí para se tomar mais inovador e
conseguir competir globalmente.
Por que o Brasil ficou apenas na 58ª posição no último ranking mundial da inovação? Esse
é, antes de tudo, o retrato de um atraso histórico em relação aos
países mais desenvolvidos, que começaram a cultivar o saber séculos
antes de o Brasil ver surgir sua primeira universidade. Até os anos 70, a
ciência brasileira era inexpressiva no cenário internacional, uma
aventura para uns poucos heróis que se lançavam na busca de conhecimento
com pouco incentivo. Quando finalmente fincamos as bases para uma
produção científica mais sólida, outros fatores emperraram os avanços.
Um deles foi a falta de foco na escolha dos temas investigados.
Esse é um fator que continua pesando contra a inovação? Já
melhoramos muito. Para se ter uma ideia, naqueles tempos em que a
ciência brasileira estava no chão, o bordão no meio acadêmico era:
"Produza alguma coisa, não importa o que nem para quê". Nossa ciência
sempre foi muito ofertista, regida por uma lógica segundo a qual
primeiro você investiga um assunto, depois pergunta se alguém está
interessado nele. Hoje, felizmente, há cada vez mais pesquisadores
debruçados sobre problemas concretos, dedicados à ciência aplicável. Mas
persistem, sim, núcleos universitários que se perdem em temas etéreos,
alguns com a visão enviesada por suas próprias crenças e ainda aferrados
a antigas bandeiras ideológicas.
Quais bandeiras?
É uma minoria, mas há gente na academia que ainda não vê com simpatia a
aproximação com o setor privado. Eles repetem o mesmo velho bordão:
“Vamos acabar colocando recursos públicos a serviço do capital’". Esses
centros de resistência sustentados sobre o discurso ideológico
contribuíram historicamente para manter as empresas distantes do mundo
acadêmico e a inovação brasileira, por conseqüência, longe do topo. Se
você conversar hoje com certas associações de docentes, talvez ainda
escute conhecidos slogans anticapitalistas. Mas reafirmo: atualmente,
eles já não traduzem mais a predisposição da maioria, que quer inovar.
Nos
países mais inovadores do mundo, a maior parcela dos investimentos em
pesquisa e desenvolvimento vem do setor privado, e não do governo. Por
que no Brasil é diferente? As empresas brasileiras se
desenvolveram sob um protecionismo pesado, num ambiente em que a
competição não era estimulada e não havia incentivo à inovação. Nenhum
empresário em sã consciência colocaria dinheiro no desenvolvimento de
novas tecnologias — algo que leva anos para se reverter em riqueza — sem
confiar na solidez das instituições nem em uma moeda cujo valor era
corroído a cada dia pela inflação. Mas isso vem mudando, e rapidamente.
De onde vem essa sua convicção? Nos
encontros com organizações como Fiesp e CNI, ouço a toda hora as
cabeças mais empreendedoras do país falando da necessidade de inovar. E
eles estão realmente pisando no acelerador. Entenderam que, no mundo de
hoje, ninguém se toma competitivo sem ser inventivo. O Brasil é um caso
único de país no mundo em que uma universidade — a Unicamp— está entre
as instituições que lideram a produção de patentes. É o setor privado
que deveria encabeçar o desenvolvimento de novas tecnologias. Cabe ao
governo, de seu lado, garantir crédito, segurança jurídica e incentivos
tributários à inovação — esta, aliás, uma iniciativa amplamente aceita
pela Organização Mundial do Comércio.
Por que a
esmagadora maioria dos Ph.Ds. brasileiros prefere trabalhar em
universidades e não no setor privado, como é tão comum nos países mais
desenvolvidos? Por muito tempo, faltavam boas oportunidades nas
empresas, mas também iniciativa por pane dos doutores brasileiros para
quebrar o ciclo da inércia que os faz permanecer no universo acadêmico.
Há, como já disse, uma acomodação na academia entre aqueles que
ambicionam pouco e não veem sentido em ir além da zona de conforto. A
própria universidade não os incentiva a sair. Quando recebem propostas
de emprego de uma empresa, não é raro ouvirem de seus orientadores: “Vão
roubar o meu doutor?’. Grandes pesquisadores às vezes se esquecem de
que uma das funções primordiais da academia é justamente formar doutores
de alto nível para elevar a produtividade da indústria.
O princípio da meritocracia não deveria estar mais presente nas universidades brasileiras? A
isonomia salarial é intrínseca ao serviço público. Um juiz que trabalha
com presteza ganha o mesmo que aquele que só bate ponto na repartição,
atravancando o Judiciário, e essa mesma lógica distorcida se replica na
universidade pública. Na posição que ocupo, preciso lidar com a
realidade encontrando caminhos para, dentro do sistema já estabelecido,
tentar garantir o reconhecimento ao esforço e aos talentos individuais. O
CNPq e a Capes já dispõem de bons mecanismos para aferir com
objetividade o nível da produção dos grupos de pesquisa e contam com
verbas para premiar os mais produtivos. O dinheiro vai para o bolso do
pesquisador e para o seu laboratório. Agora, acho que cabe, sim, uma
reflexão sobre aspectos da legislação brasileira que acabam sufocando o
princípio da meritocracia.
O senhor pode dar um exemplo? Se
eu sou o chefe de um grupo de pesquisas na universidade, tenho uma vaga
a ocupar e encontro um profissional que se encaixaria perfeitamente na
função, não posso contratá-lo. A lei me impede. Ela exige o concurso
público. Nos Estados Unidos, onde essas regras são muito mais flexíveis,
você escolhe um professor de Princeton ou de Harvard e pode fazer a ele
a proposta mais agressiva que estiver ao seu alcance. Todos sabem que a
presença de um bom professor desencadeia um ciclo virtuoso, já que ele
consegue atrair mais alunos, projetos e dinheiro para a universidade.
Os
bons cientistas brasileiros queixam-se do excesso de burocracia na
universidade. O senhor engrossa o coro?
Sem dúvida. Olhe por exemplo,
como funciona o sistema de doação de dinheiro privado para as faculdades
públicas. Essas verbas precisam ser executadas segundo as normas do
serviço público. Ou seja, se eu quero comprar um equipamento que atende
às necessidades da minha pesquisa, preciso antes lançar uma licitação. E
ela deve sempre obedecer à regra do melhor preço, que, como se sabe,
nem sempre é o critério mais adequado para fazer uma escolha no meio
científico. Para piorar as coisas, o dinheiro doado às vezes leva até um
ano para ser disponibilizado, e é o próprio pesquisador que conduz todo
o processo, perdendo um tempo valioso de sua atividade intelectual.
Quase
a metade das vagas oferecidas neste ano nas universidades públicas foi
preenchida com estudantes beneficiados pela nova política de cotas. O
senhor apoia a iniciativa? Acho que os efeitos dessa política
podem ser positivos, sim, mas o governo deve observar atentamente as
conseqüências dela para que a qualidade seja preservada acima de tudo.
Os Estados Unidos adotaram no passado um sistema mais flexível, dando um
empurrão àqueles alunos que não estavam no topo, mas que já
apresentavam rendimento escolar compatível com os desafios do ensino
superior.
Eu me pergunto: será que era necessário estabelecer um
número fixo de vagas para os cotistas? E deveria ser 50%? Ou 20%, 30%?
Se as notas de ingresso forem baixas demais, o princípio da meritocracia
ficará em xeque. Precisamos acompanhar os desdobramentos da iniciativa
para evitar isso.
Há um grupo que defende a extensão das cotas à pós-graduação. O senhor se inclui nele? De
jeito nenhum. Essa é uma bandeira agitada por grupos de
afrodescendentes que deixam de considerar algo essencial: depois de uma
graduação, as diferenças na largada da vida acadêmica já deveriam ter
sido sanadas há tempos. Se elas não foram, infelizmente, não é possível
almejar um mestrado, muito menos um doutorado. Nesse olimpo deve estar
gente verdadeiramente preparada para atuar na fronteira do conhecimento,
com alta capacidade para inovar e gerar riqueza.
Fonte : Entrevista de Glaucis Oliva à Revista Veja -
25/03/2013